sexta-feira, 20 de agosto de 2010

A árvore que virou livro



A ÁRVORE QUE VIROU LIVRO

Ricardo Quinteiro de Mattos







Eu já estava acostumada com minha existência numa mata cercada de frondosas e variada árvores e plantas. Não podia imaginar que meu destino mudaria de forma tão surpreendente. Eu sempre soube que a floresta era envolvida por magia, corria com o vento Histórias de fenômenos que ultrapassam o limite da natureza. Falam de flores que foram transformadas em perfume, de seivas transformadas em cosméticos, de folhas transformadas em chá, frutos transformados em doces e sucos e raízes, em remédios. Que horror! Tudo isso me assustava um pouco. Ah! Achava que era só lenda. Que força seria mais poderosa que a natureza? Ela que me balança com sua brisa, que me rega com a chuva, me aquece com o calor do sol, me alimenta com o sal da terra e ainda proporciona um espetáculo musical, composto de coral de pássaros e uma orquestra de insetos e outros amiguinhos. Até mesmo a pintada ao se ecoar em meu tronco, acariciava-me com seu pêlo macio.

Mas numa certa manhã, enquanto os primeiros raios do sol douravam nossas copas, um barulho estrondoso e desconhecido ecoou pela mata. Além dele nada mais se ouvia. De repente senti uma dor terrível, como se rasgassem minhas entranhas, seguida de uma tontura, senti perder meus sentidos, fui caindo e desfalecendo lentamente. A última coisa que me lembro desta agressão foi minha queda com um violento impacto, no chão envolvido por de muita folha seca que esvoaçava com o deslocamento do ar. Passei um longo tempo como se estivesse num limbo, estava hibernando. As sementes são assim, caem das árvores e ficam no chão por um longo tempo para quebrar a dormência, até a casca dura soltar-se para finalmente brotar. Juro pensei que tinha virado um caroço! Para minha surpresa a magia, que por tantas vezes me arrepiara, transformava-me num objeto útil. Ufa! Que alívio senti, quando pude ver a claridade de novo. Alguém terminava de me desembrulhar e fui colocado no alto de uma estante. Ah! Nas alturas de novo. Procurei as nuvens e não achei, aliás, não vi nada que lembrasse o meu lugar. Fiquei espremido, sentindo-me compactado. Já desesperado, diante do sobrenatural, num texto ao meu lado estava escrito: “Relaxe e seja bem-vindo ao mundo da leitura. Agora você é um livro”. Assim pude perceber que a magia na verdade não é uma lenda. Ela existe de uma forma ou de outra e pode até ter outros nomes, tanto que como um milagre renasci para outra vida. O tempo foi passando, agora de forma diferente, a cada dia me sentia mais orgulhoso do meu novo papel. He! He! He! Gostou do trocadilho? Já aceitava a transformação e compreendia que livro e árvore são importantes e que a existência de um não inviabiliza a do outro. Fui aprendendo e ensinando, entendi que não existe idade para conhecer as palavras. Ao contrário, as novas, junto de palavras já conhecidas, revelam-se, além de aflorar a curiosidade. Elas assim se desvendam: no verão pululam, no outono desnudam-se, no inverno cristalizam-se e na primavera colorem-se. Ao ler meu conteúdo, todos sentem algum tipo de emoção. Nós, livros – como oráculos – contamos a História da humanidade, preparamos para o desconhecido, levamos crianças a tirar boas notas, pessoas a viajar pelo mundo real e imaginário, geramos satisfação e prestígio. Nós eternizamos a palavra! A única coisa que entristece é ver que as pessoas não lêem, por serem analfabetas ou porque alguém que se dispõe a escrever não consegue reproduzir, publicar e editar sua forma de ver o mundo. O melhor de tudo é que, como livro, eu pude sentir o verdadeiro espírito da floresta. E que se manifesta. Quando me folheiam, sinto o frescor da brisa; quando me levam ao parque, sinto o calor do sol; quando sou levado à escola, ouço a sinfonia das crianças; ao ser lido no jardim, sinto o cheiro de terra. Enfim, sinto que ainda estou vivo.

2 comentários:

Unknown disse...

Ricardo,
Gostamos de ler e de escrever.. Gostamos muito dos seus textos. Obrigada.
Ana Luiza e Maria Clara

Escreva Bem disse...

Ricardo,

me deu uma certa inveja não saber escrever assim. Belo texto, se de onde veio esse tem mais, teremos, em breve, um belo livro.

Abraços
Geraldo